A poesia na sala de aula

A poesia é a fala do coração. Use-a para aproximar-se do seu aluno e ajudá-lo a desenvolver o gosto e o prazer pela leitura.
A conquista nasce de um carinho, de um toque, de uma palavra certa na hora certa.
Não desperdice oportunidades. Se for preciso, crie, invente... Deixe a imaginação voar livremente.


"Sei que meu trabalho é uma gota no oceano, mas sem ele, o oceano seria menor ". Madre Teresa de Calcutá.

“Educar é como dirigir em uma estrada cheia de curvas, exige atenção redobrada, pois, à medida que avançamos, um pouco mais nos é revelado". Silvia Trevisani

"Toda mudança começa primeiro em nós".

quinta-feira, 22 de março de 2012

A FOGUEIRA - MIA COUTO

A fogueira

A velha estava sentada na esteira, parada na espera do homem sadio no mato. As pernas sofriam o cansaço de duas vezes: dos caminhos idosos e dos tempos caminhados.
A fortuna dela estava espalhada pelo chão: tigelas, cestas, pilão. Em volta era o nada, mesmo o vento estava sozinho.
O velho foi chegando, vagaroso como era seu costume. Pastoreava suas tristezas desde que os filhos mais novos foram na estrada sem regresso.
 “Meu marido está a diminuir”, pensou ela. “É uma sombra”.
Sombra, sim. Mas só da alma porque o corpo quase que não tinha. O velho chegou mais perto e arrumou a sua magreza na esteira vizinha. Levantou o rosto e, sem olhar a mulher, disse:
- Estou a pensar.
- Em o quê, marido?
- Se tu morres como que eu, sozinho, doente e sem as forças, como que eu vou-lhe enterrar?
Passou os dedos magros pela palha do assento e continuou:
- Somos pobres, só temos nadas. Nem ninguém não temos. É melhor começar já a abrir a tua cova, mulher.
A mulher, comovida, sorriu:
- Como és bom marido! Tive sorte no homem da minha vida.
O velho ficou calado, pensativo. Só mais tarde a sua boca teve ocasião:
- Vou ver se encontro uma pá.
- Onde podes levar uma pá?
- Vou ver na cantina.
- Vais daqui até na cantina? É uma distância.
- Hei-de vir da parte da noite.
Todo o silêncio ficou calado para ela escutar o regresso do marido. Farrapos de poeira demoravam o último sol, quando ele voltou.
- Então, marido?
- Foi muito caríssima - e levantou a pá para melhor a acusar.
- Amanhã de manhã começo o serviço de covar.
E deitaram-se, afastados. Ela, com suavidade, interrompeu-lhe o adormecer:
- Mas, marido...
- Diz lá.
- Eu nem estou doente.
- Deve ser que estás. Tu és muito velha.
- Pode ser - concordou ela. E adormeceram.
Ao outro dia, de manhã, ele olhava-a intensamente.
- Estou a medir o seu tamanho. Afinal, você é maior que eu pensava.
- Nada, sou pequena.
Ela foi até a lenha e arrancou alguns toros.
- A lenha está para acabar, marido. Vou no mato pegar mais.
- Vai, mulher. Eu vou ficar a covar seu cemitério.
Ela já se afastava quando um gesto a prendeu à capulana e, assim como estava, de costas para ele, disse:
- Olha, velho. Estou a pedir uma coisa...
- Queres o quê?
- Cova pouco funda. Quero ficar em cima, perto do chão, tocar a vida quase um bocadinho.
- Está certo. Não lhe vou pisar com muita terra.
Durante duas semanas o velho dedicou-se ao buraco. Quanto mais perto do fim mais se demorava. Foi de repente, vieram as chuvas. A campa ficou cheia de água, parecia um charco sem respeito. O velho amaldiçoou as nuvens e os céus que as trouxeram.
- Não fala asneiras, vai ser dado o castigo - aconselhou ela. Choveram mais dias e as paredes da cova ruíram. O velho atravessou o seu chão e olhou o estrago. Ali mesmo decidiu continuar. Molhado, sob o rio da chuva, o velho descia e subia, levantando cada vez mais gemidos e menos terra.
- Sai da chuva, marido. Você não aguenta, assim.
- Não faz barulho, mulher - ordenou o velho. De quando em quando parava para olhar o cinzento do céu. Queria saber quem teria mais serviço, se ele se a chuva.
No dia seguinte, o velho foi acordado pelos seus próprios ossos que o puxavam para dentro do corpo dorido.
   - Estou a doer-me, mulher. Já não aguento levantar.
 A mulher virou-se para ele e limpou-lhe o suor do rosto.
- Você está cheio com a febre. Foi a chuva que apanhaste.
- Não mulher. Foi que dormi perto da fogueira.
- Qual fogueira?
Ele respondeu um gemido. A velha assustou-se: qual o fogo que o homem vira? Se nenhum não haviam acendido?
Levantou-se para lhe chegar a tigela com a papa de milho. Quando se virou já ele estava de pé, procurando a pá. Pegou nela e arrastou-se para fora de casa. De dois em dois passos parava para se apoiar.
- Marido, não vai assim. Come primeiro.
Ele acenou um gesto bêbado. A velha insistiu:
- Você está a esquerdear, a direitar. Descansa lá um bocado.
Ele estava já dentro do buraco e preparava-se para retomar a obra. A febre castigava-lhe a teimosia, as tonturas danando com os lados do mundo. De repente, gritou-se num desespero:
- Mulher, ajuda-me.
Caiu como um ramo cortado, uma nuvem rasgada. A velha acorreu para socorrê-lo.
- Estás muito doente.
Puxando-o pelos braços ela o trouxe para a esteira. Ele ficou deitado a respirar. A vida dele estava toda ali, repartida nas costelas que subiam e desciam. Neste deserto solitário, a morte um simples deslizar, um recolher de asas. Não um rasgão violento como nos lugares onde a vida brilha.
- Mulher - disse ele com voz desaparecida. - Não lhe posso deixar assim.
- Estás a pensar o quê?
- Não posso deixar aquela campa sem proveito. Tenho que matar-te.
- É verdade, marido. Você teve tanto trabalho para fazer aquele buraco. É uma pena ficar assim.
- Sim, hei-de matar você; hoje não, falta-me o corpo.
Ela o ajudou a erguer-se e serviu-lhe uma chávena de chá.
- Bebe, homem. Bebe para ficar bom, amanhã precisas da força.
O velho adormeceu, a mulher sentou-se à porta. Na sombra do seu descanso viu o sol vazar, lento rei das luzes. Pensou no dia e riu-se dos contrários: ela, cujo nascimento faltara nas datas, tinha já o seu fim marcado. Quando a lua começou a acender as árvores do mato ela inclinou-se e adormeceu. Sonhou dali para muito longe: vieram os filhos, os mortos e os vivos, a machamba encheu-se de produtos, os olhos a escorregarem no verde. O velho estava no centro, gravatado, contando as histórias, mentira quase todas. Estavam ali os todos, os filhos e os netos. Estava ali a vida a continuar-se, grávida de promessas. Naquela roda feliz, todos acreditavam na verdade dos velhos, todos tinham sempre razão, nenhuma mãe abria a sua carne para a morte. Os ruídos da manhã foram-na chamando para fora de si, ela negando abandonar aquele sonho. Pediu à noite que ficasse para demorar o sonho, pediu com tanta devoção como pedira à vida que não lhe roubasse os filhos.
Procurou na penumbra o braço do marido para acrescentar força naquela tremura que sentia. Quando a sua mão encontrou o corpo do companheiro viu que ele estava frio, tão frio que parecia que, desta vez, ele adormecera longe dessa fogueira que ninguém nunca acendera.
                                                        
         MIA COUTO, Vozes anoitecidas.

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